bem vindo ao espaço sideral! aqui não existe tempo. aqui não existe espaço. encontramo-nos no vazio

quarta-feira, 22 de agosto de 2012




"Todo o aperfeiçoamento da inteligência natural, todo o progresso qualitativo da humanidade, todo o combate contra a entropia física, dependem porventura na vida não do esforço muscular, mas do aumento e do aprofundamento da capacidade de sonhar.



(António Cândido Franco, Arte de Sonhar - 87 Sonhos com Teixeira de Pascoaes)

Miles Davis


Assim falam as fadas

Dizes-me que, afinal, a parede é de papel;

eu que a julgava de granito, mais alta que 
um castelo, tantas vezes impotente 
perante a gigantesca construção; 
tantas vezes derrotada a seus pés, 
a morrer e a renascer sucessivamente, 
exausta até aos ossos. 
E eis que chegas tu, em forma de sol, a
iluminar as sombras entre mim e o muro;
as sombras engenhosas que acrescentam 
pedras no mesmo instante em que eu galgo,
desmorono, rasgo o intransponível. 

Chegas, levas-me para fora do tempo, onde os sonhos 
transcendem a condição de utopia; dizes-me: "larga os remos 
ao longo do rio; deixa o barco ganhar asas, rasgar o céu, 
seguir o caminho das estrelas. quando regressares, já não verás
um muro de pedras, nem de papel, nem de coisa alguma;
quando regressares, tu pensarás amor e o amor brotará 
até das pedras; tu desejarás voar e logo estarás a pairar 
sobre as nuvens, para além delas..."

Assim falam as fadas...


* helena isabel

Esta sombra não é minha




Começo por dizer: "esta sombra não é minha!" 

As águas agitam-se, revoltam-se, elevam-se 
acima das minhas montanhas; trazem à superfície 
fragmentos arcaicos, obsoletos: de remos exaustos,
de barcos que nunca chegaram; de outras lutas, 
tantas e tão remotas... 
E eu volto a dizer: "esta sombra não é minha!" 
Tudo emerge esquivo, obstinado, opaco, arrojado.

Volto as costas aos espelhos, evito-os, 
acendo uma luz ilusória.
"esta sombra não é minha!".

Mas os caminhos estão, inevitavelmente, ladeados de espelhos. 
E agora eu percorro-os, sem medo de contemplar as sombras e
reconhecer nelas a minha própria sombra.
A montanha desce ao nível das águas, mergulha nelas e fica em paz.


* helena isabel

"A Máquina do Tempo" - H.G. Wells



Ando a viajar em "A Máquina do Tempo", de H.Q. Wells, o que quer dizer que estou em estado de deslumbre. "Não existe qualquer diferença entre o tempo e qualquer uma das outras 3 dimensões do espaço, na excepção de que a nossa consciência se desloca ao longo dele". Aqui fica a sugestão para eventuais viajantes. 


Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.


* Vladimir Maiakóvski
Estar entre o tempo e o fora-do-tempo;
um pé aqui, um pé lá e, nos entretantos, a vertigem.
Perceber a linha invisível que une os dois pontos; 
aprender a caminhar nela, como na infância
aprendemos a caminhar na linha de cá.
A quem não reconhecer o equilibrista, 
parecer-lhe-à que este é louco ou pior.
Quando estou na linha entre o tempo e o fora-do tempo,
os espectadores são secundários,
eu cairei no momento em que esperar que me critiquem
e voltarei a cair no momento em que esperar que me aplaudam.


helena isabel
O silêncio dos Homens está impregnado de medo, o chão treme e devora as
certezas, os prazeres, a liberdade. alguém alterou a rota, o rumo dos simples. Para onde caminhar agora? Onde fica o norte? Como contornar as fendas?

Ao virar de cada esquina, espreitam figuras sombrias, de espadas erguidas e afiadas. Esperam que o Homem simples passe por elas para lhe roubarem o coração - um pedaço de cada vez - até o peito ser o deserto e as fontes a jorrarem água cristalina não passarem de uma miragem, um sonho longínquo.

Tudo isto ocorre numa certa dimensão do tempo. Um pouco mais acima, os mesmos homens celebram o amor.


helena isabel


As manhãs translúcidas conquistam-se
libertando o sol das cortinas.
É uma tarefa lenta e progressiva, 
às vezes dolorosa.
O sol estende os braços até ao limite
e reclama o que é seu.
As cortinas resistem, densas, ilusórias.
Até o sol as abraçar, embalando-as como a 
uma criança a quem nasce um dente.


helena isabel

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A minha vida tem um caminho
que é sou teu,
que só tu sabes percorrer.

Seguramente,
este ainda é o nosso tempo.
Mesmo que os anos passem,
os anos não nos vencem.

Há sempre um frémito que
persiste,
um gesto de amor subtil que
irrompe como uma manhã fresca
no quotidiano dos hábitos.

Por isso,
aprenderemos a cuidar dele
com o mesmo desvelo e a mesma
serena intensidade
do beijo que de manhã te dou
e que te interrompe o sono
e que nele de novo mergulhas
sonhando com uma eternidade
só nossa


5/2/2012

Jorge Saraiva

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Suede / The Next Life

(Enquanto a Luna dorme)

há um perfume sereno
que se sugere no teu sorriso
e dura...

com a imensa ternura de
um gesto longo
[teu]
fica a doce ilusão de que
venço o tempo
e te perpetuo como um
deus secreto
que agora mesmo eu inventei


  jorge saraiva
quando o teu silêncio cai
com o peso de um rosto longo
cheio de mágoa,
eu sinto o lento embaraço
de uma indizivel tristeza...

e agora ensina-me:
como é que posso reencontrar
o caminho da tua boca?

Jorge Saraiva
falo-te do amor com a serenidade
dos dias felizes

é um trabalho (quase) sem palavras.
um olhar cúmplice,
um rosto atento aos pequenos sinais
com que gradualmente me envolves.

agora interrompo o silêncio e penso
com êxtase contido:

é tua a leveza dos passos
que ilumina os meus caminhos;
é tua a certeza dos lábios
que enche o meu peito de risos;
e a fluidez do corpo que sugere
desejos de manhãs jovens;
e uma alegria longa e branca
como se tudo nos coubesse
nas mãos:
o frémito dos gestos,
a pressão dos beijos,
a limpidez do silêncio,
a convicção tranquila
de que todo o nosso tempo
é eterno.


jorge saraiva
se eu pudesse,
tirava os panos que te cobrem a boca,
e deixava que corressem uma a uma,
todas as palavras de amor que te
imagino nos olhos.

mas não posso...
e por isso resigno-me
a um sofrimento pendular
quanto profundo

jorge saraiva
Das horas tenho apenas estas:
as que passam depressa mas não se evaporam

Todas as outras existem ao compasso dos segundos
e morrem


helena isabel
Subi os degraus até à tua casa
com o silêncio a lembrar-me palavras

(neste caso, as palavras são um vinho macio
que fervilha nas veias;

 o meu sangue, o sabor de
memórias doces e perfumadas)

Agora, não há lugar para a escuridão,
todos os sóis iluminam as escadarias

e a noite onde depositava a minha solidão
sugere-me tonalidades e fragrâncias que nunca me visitaram

a natureza é sublime quando olho para o nosso jardim
e vejo os malmequeres a crescerem e a sorrirem

Os malmequeres já não se desfazem nas minhas mãos;
já nada é como antes.


 helena isabel

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Tenho visto demasiado ódio para querer odiar - Martin Luther King

Os convencidos da vida


Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear. 

Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força. 

Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista. 

Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?(...) No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil. 

Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro. 

Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi. 


Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"

E câmeras de vigilância

Eu Sou do Tamanho do que Vejo
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... 
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo 

E não, do tamanho da minha altura... 
Nas cidades a vida é mais pequena 
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. 

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, 
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, 
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, 
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. 


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema VII" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

A origem do Mundo


De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra, 
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com 
a névoa da madrugada. O mundo, então, 
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está 
por baixo da terra; e as raízes sobem 
numa direcção invisível. De dentro 
de casa, porém, um cheiro a café chama 
por mim: como se alguém me dissesse 
que é preciso acordar, uma segunda vez, 
para que as raízes cresçam por dentro da 
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul. 


Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas"

Herberto Helder / Havia um Homem que Corria pelo Orvalho Dentro

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

What a wonderful world - LOUIS ARMSTRONG.

Igual-desigual


Eu desconfiava: 
todas as histórias em quadrinho são iguais. 
Todos os filmes norte-americanos são iguais. 
Todos os filmes de todos os países são iguais. 
Todos os best-sellers são iguais 
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são 
iguais. 
Todos os partidos políticos 
são iguais. 
Todas as mulheres que andam na moda 
são iguais. 
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais 
e todos, todos 
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais. 

Todas as guerras do mundo são iguais. 
Todas as fomes são iguais. 
Todos os amores, iguais iguais iguais. 
Iguais todos os rompimentos. 
A morte é igualíssima. 
Todas as criações da natureza são iguais. 
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. 
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou [coisa.
                                                                             
Ninguém é igual a ninguém. 
Todo o ser humano é um estranho 
ímpar. 

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida

domingo, 8 de janeiro de 2012

Os justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire. 
O que agradece que na terra haja música. 
O que descobre com prazer uma etimologia. 
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez. 
O ceramista que premedita uma cor e uma forma. 
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade. 
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto. 
O que acarinha um animal adormecido. 
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram. 
O que agradece que na terra haja Stevenson. 
O que prefere que os outros tenham razão. 
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo. 


Jorge Luis Borges, in "A Cifra" 
Tradução de Fernando Pinto do Amaral